23.7.16

Palcos

Entrei silenciosamente na sala. Vazia, imponente, cheia de memórias na paredes e em cada um dos assentos. Por ali passaram milhares de curiosos, sedentos de cultura ao mais alto nível. Cheira a mofo e a naftalina, mas também se consegue sentir o cheiro acre das emoções exaladas em palco e recebidas, de coração aberto, na plateia. Percorri o corredor central com os olhos postos no tecto, mas não era para aquele céu que queria ir. Subi ao palco. Tenho horror a palcos. E sinto-lhes uma atracção que não sei explicar. Subi devagar, para que os estalos da madeira não soassem lá fora. Senti o frio na barriga igual àquele que sentia sempre que ligava o micro, em estúdio. Senti-me grande, olhando para a plateia; pequena, olhando para cima. Um palco gigante, onde apetece gritar bem alto e sentir a vibração da minha voz voltar para mim, tocar-me na pele, e arrepiar. Nenhuma fotografia consegue guardar tanta beleza. Nenhum espectáculo fica completo sem subirmos ao palco onde foi encenado. É pelo menos esta a minha certeza. A mesma que me impede de espreitar para lá do pano vermelho mas que me empurra para isso.
E a isso fui. Com um nervoso e medo inexplicável, toquei no aveludado tecido comprido, senti-lhe as emoções e afastei-o para a esquerda. Do lado de lá... a magia de ser diferente, especial e tão importante na formação de milhares de pessoas. Um dia gostava de ser um palco.
E continuo a achar que as salas de teatro têm mais encanto quando não têm lá ninguém. Sente-se tudo na mesma, mas numa relação tão mais íntima...

20.7.16

Depois da uma

Já passava da uma. De facto, passava sempre da uma quando olhava para o relógio na parede da cozinha. Tinha sido ele que o escolhera e, hoje, já não fazia sentido nenhum a imagem dos edifícios altos de Nova Iorque. Nunca fariam a viagem. Da mesma forma que nunca mais faria bechamel. Ele é que adorava a lasanha com bechamel caseiro. continuava, ainda assim, a insistir na espera. Costumava chegar sempre perto da uma, mas desde então, nunca mais...
E lá estava o seu lugar à cabeceira da mesa. O guardanapo de pano. O copo alto, ao lado do vinho tinto. E a janela aberta, para entrar o ar .
Ele não viria. Não traria o pão do dia. Não iria assobiar um sucesso dos Beatles enquanto subia as escadas. Não haveria beijos, nem abraços, nem sexo. Nada haveria, nem que fosse mais cedo. Era já tarde demais. E da morte ninguém regressa.

19.7.16

Pertences

Vejo-vos crescer e só me apetece arrancar os ponteiros do relógio, num gesto último de desespero. Esta vontade parva de vos querer sempre meus, não vos entregar ao mundo e ao tempo, aos outros e à vida. É que sei que o nosso amor é ténue, que o meu por vocês será sempre maior que o vosso por mim. Sei que vos pertenço, mas que vocês pertencem ao mundo.
Egoísta aquele que inventou o amor de mãe, decerto era filho.