20.12.04

Transparência

Decidira, há alguns anos, tornar-se transparente aos olhos dos outros. De início foi engraçado escutar conversas sem ser notado, presenciar momentos sem deixar marcas. Sentava-se nas esplandas dos cafés a ver passar a vida e ela nem dava por ele. E, assim, foi conseguindo manter-se alheado das coisas que não lhe interessavam.
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Pior foi quando precisou que o notassem. Havia aquela rapariga, ligeira e segura, que passava por ele sem sequer o sentir. Havia o senhor do café onde se sentava e que, agora, já não o via. Havia o condutor do autocarro, que agora já não parava para o fazer subir. Havia o vizinho do 4º esquerdo que fechava a porta do elevador sem lhe perguntar se subia. Começava a incomodá-lo, esta coisa de ser transparente.
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É que, de tanto querer não ser notado, acabou por desaparecer, na forma física que lhe era natural. Anulara-se. Eliminara-se. Rescindira involutariamente daquilo que era fisicamente. Mas no peito, que agora não existia, permaneciam os sentimentos. Os homens transparentes também têm coração!!!
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Vivia triste e amargurado com a sua transparência efectiva. Mas fora ele que escolhera não ser notado. Agora, conforme a solidão exterior se ía condensando, por dentro, no corpo que não existia, nasciam nuvens escuras, cumulonimbos. E quem por ele passava agora, abria o guarda-chuva, com medo da tempestade. Fazia-se notar, agora, através da densidade da nuvem gigante, cinzenta, quase negra.
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Fazia-se sentir. Pelas tempestades que transportava dentro de si.
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