21.10.04

Amar na ausência

Desta vez, esta personagem tem nome. Chama-se Lúcia, por nenhuma razão aparente. Os traços psicológicos deixam adivinhar uma vida dedicada, abafada pela família e pelo prazer de que assim fosse. As linhas do seu corpo deixam adivinhar uma mente frágil, um coração pequeno mas uma alma grande. A Lúcia (com artigo definido feminino singular porque eu a conheço porque é uma personagem que eu inventei) não sabia ler. Mas, por outro lado, cozia com mestria fatos sublimes. Aqueles que agora escolhia para dar aos ainda mais pobres que ela.
Estava frio e o vestido - agora preto muito preto - cobria-lhe as longas pernas que nunca conheceram o calor da cêra depilatória ou o frio das lâminas de barbear. Isso é coisa de vadia.
O quarto estava ainda mais frio do que dantes, porque as febres do agora defunto sempre íam aquecendo a divisão. Agora não. Estava morto. E a Lúcia tratava das coisas do morto como quem trata das dos vivos.
Seria importante guardar o relógio de bolso e deixá-lo ficar na família. Tudo o resto era dispensável. O tempo, esse, teria de ficar na família. Havia ainda tanto para fazer. O morto já estava vestido, verdade, mas faltava aprumar os gaiatos, pôr os ganchos nos cabelos caídos nos ombros e rumar à capela. Só então choraria o seu amor. Com uma intensidade que só as mulheres sofridas, de mente frágil, coração pequeno mas com alma grande sabem fazer. Choraria na capela. Somente ali. O relógio de bolso dar-lhe-ia o tempo necessário para chorar na ausência do seu amor. Já reparara que os ponteiros nunca paravam de rodar. Não havia o fim. Choraria na ausência do seu amor. Na presença do tempo. Teria tempo. Na sua ausência.

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