Esta criança esquálida, de riso obsceno e olhares alucinados, nunca apertou nas mãos a fria face pálida, nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados, nunca enxugou as lágrimasque aniquilam e esgotam, nunca empalideceu com o metralhar dum tanque, nem rastejou num sotão, nem se chama Anne Frank.
Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola, nem despertou o amor dos editores piedosos. Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos, a não ser nos primores da técnica da esmola. Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe. E ela, raivosa e pálida, morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.
Pobre criança esquálida! Até no sofrimento é preciso ter sorte.
António Gedeão - «Anti-Anne Frank» in Poesia Completa - Ed. João Sá da Costa, Lda. (1ª edição de 1996)
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