7.11.04

Sabores envelhecidos

Não sei ler nem escrever mas - valha-me isso - ainda sei pensar. E ainda sei reconhecer as pessoas pela voz, embora me falhe já a visão. Sei quando és tu que sobes as escadas. Mesmo quando apertas as chaves entre os dedos, para não tilintarem, sei que és tu porque ninguém coloca um pé à frente do outro como tu. Conheço-te o andar, o trautear e a respiração cansada.
Raramente me diriges a palavra, mas... como te compreendo! O que haverá ainda para dizer depois de tantos anos juntos? Não te censuro - admiro-te. Admiro que ainda tenhas forças para subir as escadas. E qua ainda tenhas alegria para trautear cantigas da nossa juventude. Às vezes sinto-me só, neste corpo de velho amargo. Sei que nem sempre te disse as coisas bonitas que as mulheres bonitas merecem ouvir. Mas agora... já mal consigo soletrar o teu nome... Te-re-sa...
Gosto muito quando ligas a televisão à espera que eu me entrenha. Acho-te graça!!! Parece que ainda não percebeste que já só vejo a luz, mas não distingo os contornos. Sabes, aprendi a circular dentro de casa de olhos cegos. Tantos anos depois, seria de esperar que já soubesse onde ficam os móveis. Só espero que não te lembres de os mudar de sítio. Bem... com a tua idade, ninguém teria coragem de arrastar aparadores pela casa fora!!!...
Gosto de estar contigo. Mesmo assim, amargo, quase azedo. Tu serás sempre doce. Sempre foste. Só preciso que me abraces. Que me abraces. E que eu sinta nesse abraço a força do teu existir, que me sustenta, dia após dia. E quando as palmas das tuas mãos se encaixam no meu pescoço, para me alimentares, sinto que nada seria se, um dia, não me tivesses ensinado a amar. Mesmo que a vida seja amarga. Quase azeda.

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