19.8.04

A carta

Andava apaixonado por ela desde os 12 anos. Encantavam-no, especialmente, as canções que ela cantava enquanto lavava as camisas no tanque. Chegava a ficar embriagado com o cheiro encantador do sabão azul e branco. Agora, com mais de 27, ainda lhe custava deixar o parapeito para seguir com a vida.
As paredes do beco já não tinham a mesma brancura de outrora, nem ela parava agora para cantar melodias desconhecidas.
Hoje era o medo e as saudades de ser feliz que o prendiam à vidraça embaciada pela respiração. Tinha uma carta para lhe entregar. Nada podia falhar. Sabia que ela ia gostar das palavras. Até porque, verdade seja dita, andara a estudá-las ao longo dos últimos 15 anos. Só agora sentira coragem.
A carta falava, inevitavelmente, de amor. Estava tão bem escrita que poderia ganhar um segundo lugar num qualquer concurso literário. Dizia muito. De si, da sua longa paixão, das tardes passadas na janela a contemplá-la…
Era uma carta bonita. Como ela.
Antes de deixar o parapeito lembrou, mais uma vez, o sol, o lá, o ré e o mi cantarolados vezes sem conta no beco. Confortavam-no.
Antes de sair verificou, ao espelho, o cabelo, a gola da camisa no pullover, pegou na carta e rezou um Pai-nosso.
No peito levava o coração a bater demais e no bolso um pequeno papel azulado onde se podia ler o longo texto:
“Vejo-te da janela e és tal qual como nos meus sonhos. Quero-te mais. Para sempre.”

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