31.8.04

Pregas do riso



Sorri sempre muito, toda a vida. Disseram-me que, dessa forma, as pregas do rosto nunca chegariam a ter força para vingar. Mentiram. Hoje sou rodilho. Dizem que a culpa foi de ter sorrido demais. Que se lixe. Ao menos sei que valeu a pena. Ri e sorri sempre muito. Ao menos isso.

Estrela do meu firmamento

Hoje, sem saber porquê, dei por mim a pensar na minha avó. Nas histórias que me contava quando eu era miúda. Sim, ela ainda está por cá, facto que me deixou ainda mais preocupada.
Há uns anos tive uma professora que me aconselhou a conversar muito com a minha avó, que anotasse tudo o que de bom ou mau me contasse, para que, mais tarde, longe no futuro, eu pudesse recordar mais fielmente essas histórias. Vou começar hoje essa tarefa que me parece difícil. Esta ensinou-me a minha avó, Inácia dos Anjos de Castro:
"Estrela do meu firmamento, diz-me se o meu amor está em meu pensamento. Se está em meu pensamento, põe uma porta a bater, um cão a ladrar ou uma criança a chorar".
Segundo a minha avó, o pedido deveria ser feito sempre à mesma estrela, pois seria ela a nossa companheira pela vida fora. Tentei-o várias vezes. Resultou algumas. Agora que analiso a frase, reparo que seria difícil não ter resultado.
E foi assim que a minha avó me ajudou a perceber que o meu amor estaria sempre em meu pensamento. Ensinou-me a deixar-me ser amada. E resultou.

26.8.04

Delete

Se o delete dos computadores fosse tranferido para a minha vida teria pouco que apagar. Não me posso queixar.
Tenho amor, serenidade, trabalho, paz de espírito e, sobretudo, a consciência tranquila de que fiz tudo para evitar um delete.

24.8.04

Esperar Contigo

Esperei-te no fundo do dia. Naquele lugar com espaço para nós dois. O relógio também esperou. Sozinha, é sempre mais difícil aguardar-te. Daí que tenha levado o contador de minutos e segundos. Sempre distrai.
Na tua ausência e demora, simulei o quadro que me acolhia, na curva da esquina de sempre.
E foi assim que o pensei:

As paredes já tinham absorvido o azul-poente, que é uma espécie de azul alaranjado. As janelas já não estavam fechadas e deixavam entrar o cheiro quente da maresia. Chega a entranhar na pele, o sabor do sal. Apetece provar. Não há alcatrão, mas caminhos estreitos, dissimulados com seixos, daqueles que deram nome ao Seixal. Redondinhos, lisos, excelentes para fazer peixinhos dentro de água.

19.8.04

A carta

Andava apaixonado por ela desde os 12 anos. Encantavam-no, especialmente, as canções que ela cantava enquanto lavava as camisas no tanque. Chegava a ficar embriagado com o cheiro encantador do sabão azul e branco. Agora, com mais de 27, ainda lhe custava deixar o parapeito para seguir com a vida.
As paredes do beco já não tinham a mesma brancura de outrora, nem ela parava agora para cantar melodias desconhecidas.
Hoje era o medo e as saudades de ser feliz que o prendiam à vidraça embaciada pela respiração. Tinha uma carta para lhe entregar. Nada podia falhar. Sabia que ela ia gostar das palavras. Até porque, verdade seja dita, andara a estudá-las ao longo dos últimos 15 anos. Só agora sentira coragem.
A carta falava, inevitavelmente, de amor. Estava tão bem escrita que poderia ganhar um segundo lugar num qualquer concurso literário. Dizia muito. De si, da sua longa paixão, das tardes passadas na janela a contemplá-la…
Era uma carta bonita. Como ela.
Antes de deixar o parapeito lembrou, mais uma vez, o sol, o lá, o ré e o mi cantarolados vezes sem conta no beco. Confortavam-no.
Antes de sair verificou, ao espelho, o cabelo, a gola da camisa no pullover, pegou na carta e rezou um Pai-nosso.
No peito levava o coração a bater demais e no bolso um pequeno papel azulado onde se podia ler o longo texto:
“Vejo-te da janela e és tal qual como nos meus sonhos. Quero-te mais. Para sempre.”

17.8.04

Calor gelado

"Beber um Safari simples e não trincar o gelo é pecado", garantiu o rapaz que passeava, ligeiro, entre as mesas. A ligeireza não o impedia de olhar, incessantemente, para a esquerda e para a direita, lançando um charme digno das mais belas histórias de amor.
Ela bebericava o Safari em goles pequeninos, sôfregos e golosos. Movia-se com demora, lânguida e presunçosa. Torcia-se na cadeira de verga como se de uma chaise longue aveludada se tratasse. Parecia querer mais qualquer coisa além do que os seus olhos revelavam.
As luzes quentes e o cheiro a álcool depressa embriagaram. Despiram-se de jogos, ignoraram as regras antes implementadas.
Beberam-se por ali. Trincaram o gelo. Sentiram o calor.

12.8.04

Paralelismos

Estarei dividida, mas completa. Aqui, serei emoção. Por lá, voltarei a ser razão.

Melodias

Porque eu não me rendo
Porque eu não me vendo
Nem por ideais nem por dinheiro
E como sou e quero ser sempre assim,
[O rio que corre sem princípio nem fim]
O poder podre dos homens normais
Está a tentar dar cabo de mim.

Sumo de maçã. Simples.

Por muito que se tente fazer sumos de maçã, não há nada como, ao trincar uma, deixar escorrer o suco da fruto para dentro da boca. É uma sensação única, deliciosa e muito refrescante. E tanto suco que têm as maçãs!!!

Conflito bi-polar

Há coisas que permanecem por explicar à minha razão, enquanto o meu coração parece perceber perfeitamente. Acredito que, um dia, um e outro se encontrem na encruzilhada do peito, num sol nascente, e que, definitivamente, tentem entender-se. É que me fazem mal tantas divergências interiores.

[Ao mesmo tempo que dito o texto à razão, o coração impele-me para outra azinhaga de saber. Diz-me que devo olhar, como dantes fazia, para o céu estrelado e compreender a infinidade de coisas belas. E defacto, a razão perde vantagem. Ainda que os olhos me digam que nada nem ninguém valem a pena, a verdade é que, poder saborear a vida e as suas vicissitudes é um prazer. ]

Devo ter sido uma víbora, numa vida anterior para merecer o hoje que vivo.
(Fala o coração)
Ou então não tens sabido viver. (grita a razão)

Para filha da puta, filha da puta e meia. Digo eu, que sou quem decido a minha vida.

11.8.04

Talvez amanhã,

porque, hoje, definitivamente, não foi um bom dia.
Portanto, porquanto fale, enquanto cá nada tiver, de nada valerá.
Talvez amanhã.

9.8.04

Inocente

do Lat. innocentia, substantivo feminino.
qualidade de inocente; singeleza; ingenuidade; estado de pureza; candura, castidade; ausência de culpa ou de pecado.


E foi assim que descobri que, de inocente, não tenho nada.


Take me as I am

Incrível a forma como sempre me aceitaste e quiseste tal como sou. Com tudo, incluindo defeitos de construção de personalidade. Afinal, compraste uma embalagem com um conteúdo completamente desconhecido. E ainda assim aceitaste. Incrivel.
Bastou que te tivesse pedido, um dia, que me tomasses tua, conforme sou. E tu quiseste. Espero que tenhas pedido garantia. Eu já não garanto nada.

Mas se, ainda assim, tiveres certezas, então toma-me como sou. Assim.

Ambíguo I


Posso perguntar-te uma coisa?
Há muito tempo que não perguntavas nada.
És feliz?
Claro que não.
Nunca?
Nunca.
Tenho pena de ti.

Não tenhas. Aprendi a não ser feliz. E sou feliz assim.

6.8.04

Tempo

Quando parece que não dependemos de nada nem de ninguém. Quando é certo que a vida está por nossa conta. Quando nada nem ninguém ousa dizer-nos o que fazer. É então que percebo que o tempo é pouco para viver tudo isso.

5.8.04

Histórias Infantis

Sempre gostei de histórias para crianças. As princesas lindas de morrer, os príncipes galãs, montados a cavalo, que salvavam a donzela das mãos das bruxas. Gostava, essencialmente, dos sapos que se transformavam. Adorava os finais sempre felizes para sempre. Mais tarde comecei a gostar das bruxas, que, no fundo, tinham os seus motivos para a maldade.
Depois percebi que, afinal, as bruxas são umas empata-fadas.


3.8.04

Fazer o quê,

perante a corrente forte do mar da vida? Fazer o quê, diante da maldade inata de todos? Fazer o quê, confrontada com o abandono dos valiosos valores do ser?
Remar contra a corrente. Responder com bondade. Mostrar como é fácil bem viver-se em harmonia.
Afinal é mais fácil do que pensei. É bom ter o pensamento facilitado.

2.8.04

Gotas Salgadas


Ainda tiveste tempo de me recomendar a música como companheira de viagem. Com as malas já arrumadas na bagageira, tinha mãos suficientes para te agarrar pela última vez antes da próxima.
Obrigaste-me a levar a maçã verde e ácida. Servir-me-ia de alimento. Proibiste-me de levar o bonsai. Por muito que lhe falasse, não me responderia às dúvidas.
Para ali ficámos deitados ao desejo de nos prendermos à terra, transladarmos ao seu ritmo, devagar.
As palavras faltaram, mas o silêncio nada incomodou. A humidade da tua boca contagiou os meus olhos, que rapidamente se vazaram de lágrimas.
E sabiam a sal.
Como o teu corpo nas noites de amor.
Como o mar nas tardes de verão.
Como a picanha que um dia experimentámos numa esplanada.
Sabiam a Amor. Um amor salgado. Quase apimentado.