29.10.04

Terceira Classe

A coisa mudou quando vim para o Algarve.
Casa nova, realidades diferentes, terceira classe, uma turma nova, professora nova. Sentei-me onde ninguém queria: ao lado do José Carlos. Era um rapaz como os outros, mas gaguejava. Não me emprestou o seu livro de leitura, que eu não tinha ainda. Deixei-me ficar ao lado dele.
Eu já lia correctamente, ao contrário da maior parte da turma. O José Carlos, além das dificuldades linguísticas, tinha o problema da gaguez. Eu li, a professora adorou, elogiou-me até mais não poder. O José Carlos tentou ler, gaguejou, tremeu, enervou-se e apanhou da professora Júlia: "Viste como ela leu? Assim é que se lê, meu palerma! Gago! Que vergonha!"
A história passou-se assim, nem mais nem menos.
Resultado - no dia seguinte sentei-me sozinha. Nunca mais me ofereci para ler textos. Nunca mais levantei o dedo para dizer a resposta certa. Tive medo que alguém apanhasse por minha culpa.

28.10.04

No tempo em que éramos felizes

no tempo em que éramos felizes não chovia.
levantávamo-nos juntos, abraçados ao sol.
as manhãs eram um céu infinito. o nosso amor
era as manhãs. no tempo em que éramos felizes
o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
as marés traziam o fim da tarde e não víamos
mais do que o olhar um do outro. brincávamos
e éramos crianças felizes. às vezes ainda
te espero como te esperava quando chegavas
com o uniforme lindo da tua inocência. há muito
tempo que te espero. há muito tempo que não vens.

José Luís Peixoto, in "A criança em ruínas", edições Quasi, 2001


Se elegesse um poema que ilustrasse este blog, seria este o escolhido.

Egoísmo

Que os outros se cuidem, não tenho espírito de Madre Teresa. Nem posso querer ajudar todos. Sejam eles mesmo, ganhem gosto pela vida e arranjem uma. Estou cansada de esquecer-me de mim. Deixa-me ter os meus momentos de prazer. Saborear o meu prazer sem ter de me lamentar pela infortuna dos outros. Larga-me!, e deixa-me ser só minha. Não me obrigues a oferecer tanto de mim. Quero que sejam os outros a solicitar a minha mão. Deixa-me tomar banhos longos. Com água tépida. Besuntar-me em creme hidratante. Longamente. Preguiçosamente. Deixa-me ler os livros que ganham pó debaixo do candeeiro. Sôfregamente. Deixa-me não dormir. Nunca adormecer e perder tempo comigo. Olhar mais para dentro do que para fora. Larga-me!, e deixa-me ser sozinha. Deixa-me ser mais egoísta. Só hoje.

27.10.04

Aos adultos

Se tu me entendesses, não irias querer que eu fosse um homem como tu. E dava-te um beijo. Seria mais feliz.
Assinado
Menino do Mundo

26.10.04

Morte



Falar de morte enquanto me sinto tão viva, é como ler uma revista de trás para a frente: só lhe mudo o sentido da leitura. Porque vida implica morte. Seja lá o que isso fôr.

25.10.04

Esta criança esquálida, de riso obsceno e olhares alucinados, nunca apertou nas mãos a fria face pálida, nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados, nunca enxugou as lágrimasque aniquilam e esgotam, nunca empalideceu com o metralhar dum tanque, nem rastejou num sotão, nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola, nem despertou o amor dos editores piedosos. Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos, a não ser nos primores da técnica da esmola. Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe. E ela, raivosa e pálida, morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida! Até no sofrimento é preciso ter sorte.

António Gedeão - «Anti-Anne Frank» in Poesia Completa - Ed. João Sá da Costa, Lda. (1ª edição de 1996)

Bêbeda de ti

Quando me embriago de ti e da vida que transportas sou mais feliz. Sinto-o na pele, no peito, na alma e no corpo. Canto coisas doutros tempos, pinto traços doutras horas. Sou mais e maior, quando me embriago de ti. E sinto o vendaval dentro de mim, como nos dias em que me perco por nós.
Sou vida quando te bebo. E te sinto a escorrer dentro de mim, semeando vida.

21.10.04

Amar na ausência

Desta vez, esta personagem tem nome. Chama-se Lúcia, por nenhuma razão aparente. Os traços psicológicos deixam adivinhar uma vida dedicada, abafada pela família e pelo prazer de que assim fosse. As linhas do seu corpo deixam adivinhar uma mente frágil, um coração pequeno mas uma alma grande. A Lúcia (com artigo definido feminino singular porque eu a conheço porque é uma personagem que eu inventei) não sabia ler. Mas, por outro lado, cozia com mestria fatos sublimes. Aqueles que agora escolhia para dar aos ainda mais pobres que ela.
Estava frio e o vestido - agora preto muito preto - cobria-lhe as longas pernas que nunca conheceram o calor da cêra depilatória ou o frio das lâminas de barbear. Isso é coisa de vadia.
O quarto estava ainda mais frio do que dantes, porque as febres do agora defunto sempre íam aquecendo a divisão. Agora não. Estava morto. E a Lúcia tratava das coisas do morto como quem trata das dos vivos.
Seria importante guardar o relógio de bolso e deixá-lo ficar na família. Tudo o resto era dispensável. O tempo, esse, teria de ficar na família. Havia ainda tanto para fazer. O morto já estava vestido, verdade, mas faltava aprumar os gaiatos, pôr os ganchos nos cabelos caídos nos ombros e rumar à capela. Só então choraria o seu amor. Com uma intensidade que só as mulheres sofridas, de mente frágil, coração pequeno mas com alma grande sabem fazer. Choraria na capela. Somente ali. O relógio de bolso dar-lhe-ia o tempo necessário para chorar na ausência do seu amor. Já reparara que os ponteiros nunca paravam de rodar. Não havia o fim. Choraria na ausência do seu amor. Na presença do tempo. Teria tempo. Na sua ausência.

20.10.04

Amor à flor da pele

Entrou na cama devagar e despida, como gostava de fazer sempre que tinha alguém à espera. Adorava o cheiro da sua pele depois do duche.
Os lençóis frescos à espera de corpos quentes provocaram um arrepio central que facilmente lhe percorreu o corpo.
Depois foi sexo, amor, partilha, mestria, êxtase, cansaço, descanso, sono profundo.
Depois foi o sonho, a insónia, a conversa e o amanhecer.

O corpo arrepiado. A alma completa.

19.10.04

Armas de algibeira

Se pudesse andaria sempre com o coração na algibeira, para o poder esfregar na cara daqueles que o esqueceram. E sempre que alguém se lembrasse de cometer uma injustiça, daquelas pequenas mas que magoam, teria que levar com um órgão fortemente inundado de sangue e com uma textura viscosa.
Ou então, e dado que o coração me faz falta onde está, vou passar a arreganhar o meu melhor sorriso. Pode ser que sintam mal e repensem as atitudes... Nunca se sabe!

18.10.04

Desavenças

E ela jurou que era verdade. Que era importante.
E ele jurou que não sabia. Que era a última coisa que pensaria que lhe fazia falta.
Ela não percebeu, até hoje, porque é que ele achou tão estranho.
Ele achou estranho que ela achasse tão importante.
O clítoris, por sua vez, apenas achava aborrecido ser causa de desavenças.

17.10.04

Quentes e boas

Haverá coisa melhor do que provar o calor de uma castanha assada, num final de tarde fresco de início de Outono? E o prazer que é sentir a casca a soltar-se sem resistência... Até a tinta do jornal que serviu de invólucro às castanhas e que insite em permanecer nos dedos tem a sua magia. Tomara que o Outono se imponha ao Inverno durante mais uns tempos. São tão boas. Quentes e boas.

16.10.04

Entrei no café com um rio na algibeira

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão, a vê-lo correr da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete nuvens e estrelas
e estendi um tapete de flores a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza das àrvores
em torno a cheirarem ao luar que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir -onde só procuro a Beleza para me iludir dum destino.

José Gomes Ferreira

14.10.04

Putos bêbados

Hoje é dia de alcoolização dos perus na Universidade do Algarve. Ou seja, é dia de toda a gente ir para a Kadoc apanhar bebedeiras de caixão à cova, respirar o mesmo ar que 5 mil pessoas num recinto mal ventilado, conduzir bêbado, fugir à multa e ressacar no dia seguinte. É um dia interessante, sem dúvida. A mim dá-me nojo. Talvez seja por ter visto, há 8 anos, um caloiro a vomitar o fígado para cima de outro. Ou talvez por ter visto um, menos caloiro, a mijar para o balcão. Mas, decerto, será um dia interessante para as 5 mil crianças.

13.10.04

Certezas




Só no leito da sua morte, enquanto por ela esperava, percebeu a sua missão na vida: nascer, viver e morrer. Mas sobretudo, existir. E então bebeu o último trago de vida.

12.10.04

Crenças



Acredito que cada um de nós tem um objectivo a cumprir aquando da sua passagem nesta vida.

11.10.04

Mulheres, I

Nunca ninguém lhe dissera o quanto era formosa no acto de lavar a roupa. A mãe agradecia com o jantar. O pai, simplesmente, desconhecia-lhe as virtudes na arte de bem lavar. A avó vangloriava-se do que lhe ensinara. Mas nunca ninguém lhe dissera o quanto era formosa no acto de lavar a roupa.
Talvez fosse do vento que sempre teimava em contornar a esquina onde o tanque fora construído. Talvez fosse das saias rodadas que lhe desciam até ao joelho.
Ou talvez não fosse nada disto, mas dos olhos dele.
Que andavam sedentos de amor molhado e perfumado.
Como a roupa que ela pendurava no arame.
Interrogava-se sobre as razões de nunca niguém lhe ter dito o quanto era formosa no acto de lavar roupa. Não era do sabão azul, concerteza, pois que todas as raparigas novas o usavam. Não seria do cabelo apanhado num rodilho colorido, pois que era moda no vale. Talvez fossem as ancas, que agitava ao ritmo do vai-e-vem da esfrega da roupa. Ou então dos salpicos que, sensualmente, lhe escorriam devagar até aos tornozelos.
Ou talvez não fosse nada disto, mas dos olhos dele.
Ou talvez não fosse nada disto, mas da boca dele.
Que provara a inocência daquele pecado de mulher.
Enquanto ela pendurava a roupa no arame.

8.10.04

Há dias assim

Hoje foi o primeiro dia de chuva oficial no Algarve. Em dias como o de hoje só me apetece dormir até tarde e vegetar no sofá. Dormir durante os programas e ver a publicidade.
Nos dias como este apetece-me fazer um grande jantar para receber os amigos lá em casa. Talvez com uma entrada de tâmaras com presunto no forno, pinceladas com mel. E, quem sabe, uma sobremesa de banana flambeada regada com açúcar amarelo.
Nos dias assim apetece jogar ao monopólio até às 5 da manhã com os amigos do costume, não esquecendo as devidas pausas para torradas e chá, ou então marmelada às colheres com um copo de wiskey.
Em dias assim apetece fazer tudo o que não implique responsabilidade social.
Estar, simplesmente, já sabe bem.

4.10.04

Chapéus

Usava sempre chapéus. Mudava-os todos os dias. Tinha uma estranha mania de que, dessa forma, as ideias permaneceriam sempre no limite desejável. Era o que mais temia: que lhe roubassem as ideias.
Num dia de vendaval, levaram-lhe o chapéu alto que usava às quintas.
"Oh, tragédia! Oh, desgosto!"
Passou a anotar as ideias no papel. Escrevia tudo.
Depois vieram as novas tecnologias e fez um blog. Escrevia mais.
Esqueceu os chapéus. Doou-os ao
Museu do Trajo do Algarve. Escreveu sobre isso.